A nossa ‘Pasionaria’

A nossa ‘Pasionaria’

Por Alberto Dines em 27/05/2013 na edição 747

Reproduzido do Diário de S.Paulo, 26/5/2013; intertítulo do OI

 

No seu artigo semanal na Folha de S. Paulo (ver “Mensalet”, 24/5/2013), Marina Silva, a ex-ministra, ex-senadora e pré-candidata à sucessão da presidente Dilma Rousseff, deixou de lado a inspirada pregação em defesa das causas ambientais e adotou veemência e indignação inusitadas. Sem medo de ser acusada de inimiga da liberdade de expressão, investiu pesadamente contra as centrais de difamação e desinformação que funcionam abertamente na blogosfera.

“Uma investigação poderia mostrar essa espécie de ‘mensalão da internet’, indústria subterrânea da calúnia”, escreveu furiosa. A perversa boataria dando conta da suspensão dos benefícios do programa Bolsa Família foi um dos episódios que a revoltaram, outro foi a manipulação de uma declaração dela própria ao condenar os equívocos cometidos pelo pastor-deputado Marco Feliciano (PSC-SP) e, ao mesmo tempo, reclamar que não fossem estendidos à confissão religiosa da qual ele faz parte. Marina então descobriu falsos perfis espalhados nas redes sociais e organizações com brigadas digitais encarregadas de manipular e distorcer o noticiário ao seu respeito. De repente, o que seria uma condenação das idéias do pastor foi rapidamente convertida em endosso.

Frágil e poderosa

No momento em que a chamada mídia tradicional admite sua incapacidade para enfrentar o dilúvio informativo produzido pelo que Marina designa como “jornalismo autoral”, sua advertência transcende a esfera da sociologia da comunicação e encaixa-se na agenda política e eleitoral irreversivelmente antecipada. Mas ela não pode ignorar que uma parte apreciável dos 20 milhões de votos obtidos nas presidenciais de 2010 veio de internautas.

A revolta da candidata da futura Rede Sustentabilidade é justificada, mas dificilmente produzirá resultados. A internet é basicamente incontrolável e assim deverá manter-se. Seu antídoto natural – o jornalismo impresso de qualidade, ou o que dele sobrou – está vitalmente absorvido com a sua própria sobrevivência. As manipulações extremas poderão ser identificadas e punidas judicialmente. Mas os filtros da sociedade estão entupidos, incapazes de eliminar a incrível quantidade de intrigas e maledicências incessantemente colocadas em circulação.

Resta saber se a própria sociedade está disposta a trocar o seu ócio prazeroso pelo empenho em reduzir o lixo e os detritos que ela produz na febre de consumir maquinetas, aplicativos e abobrinhas.

Marina Silva é a nossa Pasionaria [Dolores Ibarruri (1895-1989)] – a voz da Espanha que repudiou o fascismo do general Francisco Franco – frágil e poderosa, intransigente emsuas devoções, mesmo quando confrontada por forças superiores. Não merece ser abandonada.

Os pobres voltam à pauta

Os pobres voltam à pauta

Por Luciano Martins Costa em 27/05/2013 na edição 747

Comentário para o programa radiofônico do Observatório, 27/5/2013

 

Folha de S.Paulo e o Globo trazem em suas edições de segunda-feira (27/5) duas reportagens que rompem, de certa maneira, o longo silêncio da imprensa sobre as mudanças que vêm ocorrendo no perfil demográfico e de renda da sociedade brasileira por conta dos programas sociais.

O jornal paulista apresenta um olhar crítico, observando que a renda dos mais pobres subiu no atual governo, mas essa população ainda sofre em condições de vida inaceitáveis. O jornal carioca faz uma abordagem mais otimista, analisando a melhoria das oportunidades de emprego e renda dos negros no Brasil.

Folha usa o Índice de Desenvolvimento da Família, criado pelo próprio governo para detalhar o acompanhamento de resultados dos programas de distribuição de renda, para mostrar que o programa Brasil sem Miséria não resolve completamente o desafio da pobreza extrema. O interesse manifesto pelo jornal é mostrar que “o governo Dilma Rousseff melhorou a renda dos pobres, mas não solucionou seus níveis miseráveis de acesso a emprego e educação”.

O diário paulista cumpre seu papel ao cobrar uma solução completa para o problema social, mas erra ao confundir um programa emergencial de combate à miséria com a questão mais ampla da redução de diferenças sociais.

Embora a pauta devesse levar em conta que o aumento da renda é apenas o ponto inicial de alavancagem da mobilidade social, que se completa com outras medidas, como aconteceu nos primeiros anos do Bolsa Família, é interessante observar como essa questão começa a frequentar as preocupações da imprensa sobre as condições de vida dos brasileiros mais pobres.

Na história do jornalismo brasileiro, o ponto alto das reportagens de cunho social já tem mais de 50 anos e aconteceu em 1960, quando o repórter Audálio Dantas descobriu os diários da catadora de papéis Carolina Maria de Jesus. Curiosamente, aquela reportagem de Dantas também foi publicada originalmente na Folha de S.Paulo, mas não tratava de índices oficiais de pobreza: o repórter simplesmente deu voz à mulher favelada e depois transformou seu caderno de anotações em livro de sucesso internacional, traduzido para mais de dez idiomas.

Desde então, o desafio da miséria frequentou a imprensa nas duas décadas seguintes, principalmente por conta dos movimentos populares apoiados pela igreja católica, mas o tema simplesmente desapareceu das páginas dos jornais no início deste século, substituído pela pauta da violência.

Dívida social

Os indicadores surpreendentes da ascensão de uma nova classe de renda média, que praticamente sustenta a economia brasileira, demoraram a ser assumidos pela imprensa. Já faz dez anos que se iniciou esse processo, marcado pela consolidação de programas sociais de transferência condicional de renda, e há muitos indicadores a serem analisados.

Globo aborda, na segunda-feira (27), uma década de queda na desigualdade étnica, mostrando como cresce a taxa de emprego e renda dos negros, e de como esse grupo étnico passa a ter uma presença maior entre os empregadores.

Uma das fontes da reportagem é um estudo do economista Marcelo Paixão sobre empreendedores negros. Embora persistam importantes desigualdades étnicas e de gênero, ele constatou que a proporção de negros entre os empregadores aumentou de 22,84% em 2003 para 30,19%, em 2013. Entre as mulheres negras, que historicamente encontram maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho, o desemprego caiu de 18,2% para 7,7%, no mesmo período. Essa nova circunstância é acompanhada pelo aumento da escolaridade entre negros e pardos, o que acrescenta aos índices de renda o fator positivo da autoestima.

O novo perfil da população negra acompanha o fenômeno da mobilidade social e revela alguns pontos interessantes do processo gradativo de redução das desigualdades. Os brasileiros que se declaram negros ou pardos somam 100,5 milhões de pessoas, ou 51% da população total do Brasil. Desse total, 50% está na classe média de renda, 39% ainda são considerados pobres e apenas 11% alcançaram a classe de renda alta.

Levando-se em conta que, entre os não negros, 52% são de classe média, 29% estão na classe de renda alta e apenas 19% são considerados pobres, pode-se constatar com facilidade que as diferenças sociais ainda têm um forte componente étnico.

Embora as duas reportagens ainda contenham poucos elementos para um retrato completo das mudanças que têm ocorrido no Brasil, é importante que a imprensa registre alguns aspectos desse processo, ainda que a intenção implícita, como no caso da Folha, seja de fazer restrições aos programas sociais.

Para o leitor atento, o importante é constatar que os programas de transferência de renda funcionam e que as políticas de cotas são uma forma eficiente de ajustar parte da dívida social que o Brasil tem consigo mesmo.

Comer insetos para acabar com a fome?

Comer insetos para acabar com a fome?

 
 

Segundo a FAO, atualmente, cultiva-se o suficiente para alimentar 12 bilhões de pessoas, e no planeta somos 7 bilhões. Há comida. O problema é: em mãos de quem está a comida?

 

21/05/2013

 

Esther Vivas

 

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) publicou na semana passada um relatório que causou certo alvoroço: “Insectos comestibles. Perspectivas de futuro para la seguridad alimentaria y la alimentación”, onde recomenda o consumo de insetos para dar de comer a um número cada vez maior de pessoas. Porém, acabar com a fome no mundo passa por começar a consumir insetos ou tornar accessível a comida às pessoas? Acho mais plausível a segunda opção.

Não tenho nada contra o consumo de “bichos”, o que, em outras latitudes está plenamente aceito. Segundo a FAO, hoje no planeta pelo menos dois milhões de pessoas ingerem regularmente escaravelhos, lagartas, abelhas, formigas, gafanhotos, lesmas e um longo etcétera. Um total de 1.900 espécies que são comidas na África, na Ásia e também na América Latina. E, segundo o mencionado relatório, têm alto conteúdo proteico, matérias graxas e minerais. Porém, para nós, a ideia de levá-los à boca nos produz nojo.

Os debates que, atualmente, giram ao redor da proposta da FAO em meios de comunicação diversos são feitos com clara visão etnocêntrica do que comemos, associando o consumo de insetos a um comportamento primitivo, como se nós tivéssemos a verdade absoluta sobre o que se pode e não se pode comer. Me pergunto: O que pensarão em outros países dos caramujos ao molho, do coelho assado, da paella, coelho com caramujos…? Creio que mais de um centro europeu não aguentaria nem dois minutos na mesa, imaginando seu coelho mascote cozido como bisteca e rodeado de moluscos babosos.

Porém, além das considerações culturais, creio que o problema da fome tem que ser abordado a partir de outra perspectiva. Não se trata, como solução mágica, de apostar na ingestão de insetos, independentemente de suas qualidades nutritivas, mas o nó da questão está em perguntar-nos como, em um mundo da abundância de alimentos, há tantas pessoas que não têm o que comer? Hoje, o problema da fome não reside na produção, mas na distribuição. Não se trata de produzir mais, ou de buscar novos produtos para comer; mas, de distribuir os que já existem e torná-los accessíveis a todos.

Segundo a FAO, atualmente, cultiva-se o suficiente para alimentar 12 bilhões de pessoas, e no planeta somos 7 bilhões. Há comida. O problema é: em mãos de quem está a comida? Os alimentos converteram-se em um instrumento de negócio por parte de umas poucas multinacionais da agroindústria que priorizam seus interesses empresariais em detrimento das necessidades alimentares das pessoas. Dessa forma, se não tens dinheiro para pagar o preço cada dia mais caro da comida ou acesso aos meios de produção, como terra, água e sementes, não comes.

Acabar com a fome passa por exigir justiça e democracia nas políticas agrícolas e alimentares. E devolver aos povos a soberania alimentar, a capacidade de decidir sobre o que e como produzir, distribuir e consumir. Antepor direitos a privilégios. E apostar em outro modelo de agricultura e alimentação: de proximidade, camponesa, agroecológica… Somente assim todo mundo poderá comer.

 

Esther Vivas é autora do livro “Do campo ao prato. Os circuitos de produção e distribuição de alimentos”.

Tradução: Adital

Comentários

ESSA VERDADE NÃO É DITA…

plaz (não verificado) – 24-05-2013 9:17

SEM DÚVIDA NENHUMA ESSA VERDADE NÃO É DITA, E É ESSE TIPO DE TEXTO JORNALISTICO QUE PRECISA SER CRIADO E ESPALHADO, VER A REALIDADE ATRAVES DE OUTRO PARADIGMA É A NOSSA ÚNICA SOLUÇÃO… Sois Grato

COMER INSETOS PARA ACABAR COM A FOME

Rohger Castilhos (não verificado) – 23-05-2013 9:11

Do campo ao descarte (lixo)! 50% do que é produzido é desperdiçado. Inclusive, há o desperdício do desperdiçado! Nada deste material torna ao campo como fertilizante na forma de composto orgânico.Um bilhão de famintos X um bilhão de obesos, aí temos uma ideia do desequilíbrio alimentar.Mas enfim, creio que comer insetos é uma “solução” distante, espero! A questão como o texto bem diz é mercantilista, alimento é mercadoria, isto é posto e claro, logo, estamos falando de U$, argumento que, infelizmente, supera a morte de milhares de seres.Mas e a água?!? Sem esta, mesmo que não exista fome, não há como produzir alimentos. O problema é mais sério ainda.Aproveitemos, enquanto “está bom”! 

PREDADORES E VÍTIMAS…

João de Deus Netto (não verificado) – 23-05-2013 7:19

Como sempre: alimentação decente aos olhos, só para os abastados. No Brasil, felizmente, só 1% se alimentam também de escaravelhos, ROLA-BOSTAS, calunistas amestrados… Lembro que no auge da indústria da seca no Nordeste do Brasil, as pequenas cestas básicas continham três rolos de papel higiênicos…Tripudiavam sem dó nem piedade cristã católica nos feudos do padim Ciço santos dos coronéis de patentes negociadas com o voto e a miséria de milhões…Ganharam o troco.  

QUEM SOU EU PARA CONTESTAR OS

DARCY BRASIL RODRIGUES DA SILVA (não verificado) – 21-05-2013 19:25

Quem sou eu para contestar os números da FAO. Se ela afirma que a quantidade de alimentos produzidos seriam suficientes para alimentar 12 bilhões de seres humanos, então…. Ocorre apenas um porém que sempre advém ao lançarmos mão de um único dado. A quantidade de alimentos produzidos daria para alimentar 12 bilhões de pessoas. Esse é o dado bruto e incontestável. Entretanto, a pergunta cabível seria: os ecossistemas terrestres são suficientemente resistentes para suportarem que se produzam essa quantidade enorme de alimentos? Daqui a 40 anos, o planeta Terra continuará sendo capaz de produzir  alimentos suficientes para alimentar 12 bilhões de pessoas, ou será capaz de produzir mais alimentos ainda ou ,então, a outra hipótese possível, essa capacidade terá decaído, por conta de impactos na biosfera que a converteriam menos produtiva? Entre os alimentos relacionados pela FAO se encontram aqueles que se contam entre as comodities? Acho que há necessidade de uma dupla discussão em que ambos os enfoques são igualmente importantes. Primeiro, independentemente da capacidade de se alimentar a humanidade inteira que admitimos, isso jamais constituirá um fato em um mundo capitalista. Esqueçam! Esse dado só serve para realçar as injustiças desse sistema. Por outro lado, o planeta Terra reclama que os métodos de produção de alimentos colocados em prática sejam revistos e substituídos por outros que teriam, dado o atual estágio de desenvolvimento do conhecimento humano, duas consequências. A primeira, negativa face à quantidade absoluta de alimentos produzidos, posto que não seria mais capaz de alimentar 12 bilhões de alimentos, mas provavelmente seria capaz de alimentar 8, talvez, 9 bilhões de pessoas com folga. A segunda consequência, positiva, posto que reconverteria o sistema de produção de alimentos em um processo auto-sustentável, em equilíbrio com os ecossistemas terrestres.  Para que isso ocorra, há que se mexer nos hábitos culturais humanos relacionados à sua forma de escolher os alimentos. A pecuária, deveria ficar restrita à produção de leite, erradicando-se a produção de carne, dado à baixíssima produtividade de alimentos que essa representa. Há uma continha que diz que uma área que produz carne suficiente para alimentar um único ser humano, se fosse substituída ,por exemplo, pela produção de soja, alimentaria 24 homens.  Insetos são fontes riquíssimas de proteínas, sendo a criação de insetos ( uma verdadeira “insetocultura” ) algo de baixíssimo custo e impacto ecológico, quando comparado com a própria piscicultura, que,até onde eu sei , é a fonte de produção de proteína menos impactante sobre o meio ambiente. Imagine a conversão de uma nuvem de gafanhotos encarada como uma praga em alimento, com esquemas de captura desses animais com armadilhas apropriadamente desenvolvidas em lavouras agora plantadas com o propósito inusitado de atraí-los, despreocupados de se proteger das investidas dos ataques dos mesmos. Penso que, desse modo, seria interessante que se discutisse o problema sobre esse o enfoque da produção dos alimentos a partir de uma distribuição democrática, humanista e socialista dos mesmos, mas também buscando estabelecer qual a capacidade que o planeta possui de produzir alimentos sustentavelmente, o que não nos é dado conhecer pelo valor da produção total do que se considera como alimentos hoje. Por outro lado, nada impede e tudo aconselha que se reveja , em nome de um melhor relacionamento dos homens com a natureza, os hábitos alimentares, a partir sobretudo da pesquisa de formas de introduzir novas fontes de proteínas animais na alimentação das futuras gerações, de forma obrigatória e necessária e das pessoas das presentes gerações, de forma consciente e facultativa. Sendo assim,que tal um talharim com molho de baratas caseiras enriquecidas com vitaminas do complexo B e omega 6? 

Às três da tarde na Teodoro Sampaio

Às três da tarde na Teodoro Sampaio

 
 

Ao ver de dentro do ônibus a cena, pude ver a criança negra sendo agarrada por detrás do pescoço e sendo lançada no meio da rua. Foi o suficiente para sair em disparada do ônibus e ir em direção a eles

21/05/2013

por Ana Paula Salviatti

do site Passa Palavra

São três da tarde, esquina da Pedroso de Morais com a Teodoro Sampaio, próximo ao Largo da Batata, Zona Oeste de São Paulo, um dos pontos mais movimentados da capital paulista. Dois homens em plena esquina agridem três crianças. Crianças pobres: uma negra, uma mulata e a última, uma branca que não era loira.

Agredindo.

Ao ver de dentro do ônibus a cena pude ver a criança negra sendo agarrada por detrás do pescoço e sendo lançada no meio da rua. Foi o suficiente para sair em disparada do ônibus e ir em direção a eles. Ao chegar, o segundo homem estava levando a criança branca, mas não loira, pela orelha até à calçada do outro lado da rua. Nesse momento tive a desgraçada sorte de vê-lo, ao largar a criança na calçada, dizer com o dedo apontado em seu rosto:

– Cala sua boca, você é um bosta.

Disparei em meio àquela cena que os dois homens adultos se afastassem das três crianças imediatamente. A discussão estava instalada. Naquele exato momento tive a plena consciência de que um linchamento público não seria um destino distante das três.

– Mas eles são seus filhos?

– Não são e nem precisariam ser, são crianças e isso basta.

– São ladrões, são bandidos, fazem isso sempre.

– Não é sua função dizer o que eles fazem ou não. Inclusive o crime é seu. Você não pode agredir essas crianças, eu mesma vi.

Nisso, dois polícias que estavam do outro lado da rua vieram em direção à confusão que eu sozinha havia instalado.

– Pois não, o que está acontecendo aqui?

– Esses dois homens estavam agredindo essas crianças, senhor policial, eu posso ser testemunha. O primeiro senhor agarrou a criança pelo pescoço e o segundo arrastou a outra criança pela orelha, a xingando de bosta.

Um dos homens me interpelou:

– Mas você não vê que eles são bandidos?

– Não, não vejo, senhor. Vejo três crianças serem agredidas no meio da rua por vocês.

O primeiro policial se aproximou, pôs suas mãos no cinto e disparou:

– Eu resolvo isso já, vou levar esses três moleques para a FEBEM e a gente resolve isso já.

Imediatamente disparei:

– É assim que se dirige a uma criança, senhor policial?

– O que a senhora disse, senhora?

– É assim que o senhor se dirige a uma criança senhor policial? Se ele fosse branquinho dos olhos azuis o senhor falaria assim com ele, senhor policial?

Com um sorriso nos lábios me disse:

– A senhora gostaria de ir à delegacia abrir uma representação?

– Estou à disposição.

O adulto que disse a uma das crianças que ele era um bosta me perguntou:

– Você não acompanha a televisão?!

– Não coloque apresentadores da tevê no meio disso aqui. Vocês acreditam que pegando uma criança no pescoço no meio da rua, xingando ela de bosta, vocês vão incentivar o quê?! Essas crianças vão ficar malucas e por muito menos vocês estão cultivando o que assistem na televisão. Eles têm direitos sonegados. Eles têm direito a lazer, cultura e educação, e é tudo o que os três não têm.

As poucas pessoas que paravam soltavam comentários a favor de um linchamento público das três.

– São bandidos, já assassinaram alguém! Isso ai é tudo bandido, tudo assassino!

O homem que havia segurado o pescoço do menino se aproximou de mim e disse que ele estava errado e que me pedia desculpas. Respondi que ele não devia desculpas a mim, mas à criança a quem ele havia dado a enforcadura no pescoço. Ele então sumiu.

O segundo policial, muito mais flexível, abordou a questão da seguinte forma:

– O papel da Polícia Militar é mediar conflitos. São situações onde é difícil se chegar a um consenso.

– Senhor policial, mas não se trata de chegarmos a um consenso, não? Eles não podem agredir as crianças. É a lei.

– Sim, a senhora tem razão.

O policial dirigiu-se a mim e às crianças, que a esta altura já estavam todas atrás de mim como pintos atrás de uma galinha. Disse o que eles poderiam e não poderiam fazer, e que eu estava dispensada – após anotar somente o meu RG. Questionei então se o senhor policial não iria falar o que aqueles dois homens não poderiam fazer.

– Sim, sim. O senhor, quando tiver algum problema, retém a criança no local e liga no 190.

Só.

– A senhora pode ir embora, vocês podem ir embora.

E um instante de silêncio se fez em mim. Eu não ia embora. Eu poderia ter dito e feito muitas outras coisas, mas estas foram as que consegui sem ter sido presa por desacato. No final eu tinha três crianças olhando para mim imóveis. Eu tinha três crianças ali.

Detalhe: nenhum dos dois homens negou o que havia feito em momento algum; para meu espanto tentaram justificá-lo de uma forma bastante específica. Nossa televisão está regando o fascismo que transborda dos corações paulistanos. O que era uma simples ideia, agora é plena realidade. Eram três horas da tarde em plena Teodoro Sampaio, o que será das três da tarde no Jardim Paulistano ou no Campo Limpo? Eram três crianças que não passavam da altura do meu diafragma. Eram três indivíduos em plena formação, que foram humilhados em praça pública por pessoas que entenderam-se no direito. Adultos alimentados e pavimentados por um discurso massivo vomitado hora a hora pela nossa televisão.

A não implementação das garantias constitucionais dos direitos das crianças e dos adolescentes está dando seus frutos mais amargos. Até quando nosso Ministério Público irá esperar para que ele, sim, entre com uma representação contra o discurso de ódio midiatizado? Quando crianças como essas forem assassinadas preventivamente? Afinal, são todas assassinas como mostram na tevê, memória que não me deixou escapar um transeunte que se dignou a parar e a verborragir à minha frente. Se são todos assassinos, na dúvida eles não merecem outra coisa que um tratamento preventivo.

O que eu assisti abalou a mim, mas e às três? Por muito menos eu me tornaria um adulto revoltado. Alguém aqui sabe o que significa ser chamado de bosta ou ser segurado pelo pescoço como um animal em meio à Av. Teodoro Sampaio às três da tarde numa quinta-feira? Alguém?

Comentários

TODO OS DIAS ,AO CAIR DA

DARCY BRASIL RODRIGUES DA SILVA (não verificado) – 22-05-2013 1:43

Todo os dias ,ao cair da tarde, os pontos do Ibope se disputam na TV comercial pelo fascismo, da Bandeirantes, e o nazismo, da Record. Os assistimos atentos , como se fossem capítulos de uma novela, com o controle remoto nervoso na mão,enquanto preparamos o jantar. No rodapé da tela da TV, lemos o placar da sondagem interativa “democrática” do programa : 78% a favor da redução da maioridade penal, 22% contra. Se não formos capazes de convencer o nosso povo de que essa campanha indecorosa a favor da redução da maioridade penal , promovida pelo monopólio dos meios de comunicação que a direita detém em suas mãos, está voltada contra os seus próprios filhos, então, melhor que renunciemos a luta em defesa de nossos ideias humanistas.Essa é uma contra-campanha que urge iniciar! Não importa que se entenda que trata-se de cláusula pétrea e que, portanto, a possibilidade de que a direita alcance o seu intento, modificando a lei, é extremamente remota. Não se pode acenar com a lei quando a sociedade contra a lei se indispuser. Não queremos que um princípio justo se imponha pela força. A lei tem que se respeitada mas, acima de tudo, tem que ser considerada justa.O que estamos assistindo é mais que uma campanha fascista que busca atacar o ECA. Trata-se de antecipação de tema de campanha eleitoral, trabalhando-se politicamente um ponto em que a direita está contando, nesse momento, com amplo respaldo da chamada opinião pública. Se a direita antecipou a campanha eleitoral trazendo a redução da maioridade penal para o cenário político, então, a esquerda precisa ir para as ruas defender o ECA e aproveitar para exigir que ele seja imediatamente respeitado por todos os poderes públicos, e por autoridades constituídas, como os governadores do PSDB de São Paulo e de Minas Gerais, que clamam oportunisticamente pela redução da maioridade penal.Recomendo que se leia o belo texto da menina que o escreveu com o espírito de revolta e combatividade de que devemos nos imbuir para responder a esse ataque infame contra seres humanos não formados e desamparados que são permanentemente tratados como criminosos e jamais como desassistidos, como vítimas de um um sistema de ganâncias que lhes negam as mínimas condições para que possam se desenvolver, em clima de paz e segurança econômica e afetiva, como seres humanos dignos, decentes e vocacionados para serem felizes.

COMO DIZ MARILENA CHAUÍ, A

PETER (não verificado) – 21-05-2013 22:40

Como diz Marilena Chauí, a classe média paulistana é sinistra!

Barbosa e as mordomias do STF

Barbosa e as mordomias do STF

 
 

Na crítica aos partidos de “mentirinha” que tornam “o Congresso um poder dominado pelo Executivo”, o ministro Barbosa esqueceu de dizer que o Judiciário tem grande parte de responsabilidade nesta deformação institucional

22/05/2013

 

Ricardo Kotscho,

 

Na mesma segunda-feira em que o Estadão rompia a cortina de silêncio que protege o Judiciário de críticas, ao revelar as mordomias aéreas dos meritíssimos ministros, em reportagem de Eduardo Bresciani e Mariângela Gallucci, Joaquim Barbosa, o presidente do Supremo Tribunal Federal, atacou o Congresso Nacional pela “ineficiência, inteiramente dominado pelo Executivo” e os partidos políticos em geral, que qualificou de “mentirinha”.

A surpreendente reportagem do “Estadão” conta que o STF gastou, entre 2009 e 2012, R$ 608 mil só com passagens internacionais de primeira classe para esposas de ministros e outros R$ 295,5 mil em viagens dos magistrados em períodos de recesso. Além disso, o jornal denunciou que Joaquim Barbosa viajou 19 vezes por conta do STF em períodos nos quais estava de licença médica, tendo como destinos Rio, São Paulo, Fortaleza e Salvador.

Em sua longa palestra no Instituto de Educação Superior de Brasília, onde é professor, Joaquim Barbosa, que se apresentou como uma espécie de tutor dos outros poderes, não tocou neste assunto das viagens patrocinadas pelo STF, que consumiram um total de R$ 2,2 milhões dos cofres públicos nos últimos três anos.

Não que o falante Barbosa tenha contado alguma grande novidade que todos os cidadãos já não saibam sobre o funcionamento do parlamento e dos partidos políticos ou tenha ofendido membros de outros poderes, mas estranhamente preferiu o silêncio quando foi perguntado, após a palestra, sobre viagens pagas pelo tribunal e licenças médicas.

Ao ouvir a pergunta, o presidente do STF, como tem acontecido em outras ocasiões recentes, quando é questionado, mostrou-se bastante irritado:

“Eu não quero falar sobre este assunto. Eu não li a matéria. Essa matéria é do seu conhecimento, não é do meu”.

Pois deveria falar, já que se trata de uso de dinheiro público em proveito privado, embora o STF autorize este tipo de benefício, como informa a reportagem:

“O pagamento de passagens aéreas a dependentes de ministros é permitido, em viagens internacionais, por uma resolução de 2010, baseada em julgamento de um processo administrativo do ano anterior. O ato diz que as passagens devem ser de primeira classe e que este tipo de despesa deve ser arcado pela Corte quando a presença do parente for “indispensável” para o evento do qual o ministro participará”.

Alguém sabia disso? Qual o critério de “indispensável”? No meu caso, por exemplo, mesmo a trabalho sempre gosto de viajar acompanhado da minha mulher, mas quem tem que pagar a passagem dela somos nós.

Na crítica aos partidos de “mentirinha” que tornam “o Congresso um poder dominado pelo Executivo”, o ministro Barbosa esqueceu de dizer que o Judiciário tem grande parte de responsabilidade nesta deformação institucional, como bem lembrou, em artigo publicado na “Folha”, o cientista político Humberto Dantas, professor do Insper, depois de listar vários casos em que o STF facilitou a proliferação de legendas.

“Diante de tais aspectos, não parece ser apenas o Executivo a furtar o Legislativo de seu papel. Não há no país poder mais criativo em matéria eleitoral que o Judiciário”. Assim, que o professor Barbosa seja capaz de observar que o órgão que preside contribui para reforçar a `mentirinha´ chamada `partido político´.

Antes do dia acabar, a assessoria do presidente do STF distribuiu nota para dizer que Barbosa falou na condição de “acadêmico e professor” e não teve “a intenção de criticar ou emitir juízo de valor a respeito do Legislativo”. Melhor assim, pois o presidente da Câmara, Henrique Alves, já tinha divulgado outra nota em que qualificou a manifestação do presidente do STF de “desrespeitosa”.

O que mais me chama a atenção neste episódio é que nós estamos habituados a ver e ouvir todos os dias duras críticas sobre mordomias contra membros do Executivo e do Legislativo, em todos os níveis, mas que me lembre é a primeira vez que um veículo da grande imprensa trata desta questão no Supremo Tribunal Federal.

Se os viajantes fossem membros de outro poder, certamente a reportagem repercutiria nos demais veículos, ganharia ares de escândalo e logo alguém pediria a instalação de uma CPI.

A HERANÇA DA VEJA:

A HERANÇA DA VEJA: O PENSAMENTO BINÁRIO NA POLÍTICA E A IMBECILIZAÇÃO DA CLASSE MÉDIA NAS ÚLTIMAS DUAS DÉCADAS

Deixe um comentárioPublicado por  em 27 maio, 2013

Em 1989, o PIG conseguiu eleger Collor e também tirá-lo

Em 1989, o PIG conseguiu eleger Collor e também tirá-lo em seguida

Nas últimas duas décadas, a revista Veja manteve um ataque constante à inteligência da classe média brasileira. Nos primeiros anos de democracia, esse ataque não foi tão intenso, visto que o governo de FHC representava a presença de um aliado civil na presidência da República e havia também, ainda hoje, o controle do governo paulista com o PSDB, que mantém a compra desse panfleto para as escolas públicas.

No entanto, em 2002, com a vitória de Lula, a situação começou a mudar e a ameaça ao poderio de mídia das famílias oligárquicas tornou-se não tão seguro. Essa insegurança é própria do capitalismo e das democracias representativas, quando funcionam razoavelmente. Os avanços políticos de partidos mais progressistas foi jogando a revista Veja e os outros grupos de mídia a situações extremadas de deslealdade jornalística, a ponto de se fazer parceria com criminosos para se obter informações, chantagear e achincalhar a vida de políticos.

O mote ideológico, que se tornou redundante na revista Veja, comandada por Roberto Civita, morto no último domingo, é o do pensamento binário que sustentou o golpe militar de 64 e também todos os golpes nos últimos 50 anos na América Latina, como bem mostra o jornalista australiano John Pilger, em Guerra contra a Democracia. Dos anos 90 para cá, a revista Veja se tornou a porta bandeira da imbecilização da classe média, aterrorizando os leitores com o fantasma do comunismo, do petismo, etc.

Assim, toda a crítica à selvageria do capitalismo, toda violência perpetrada por leis e manobras jurídicas, toda a violência polícial ou midiática passou a ser interpretada como uma crítica comunista, petista, petralha etc. Qualquer pessoa que questione a desigualdade, a desonestidade e as práticas violentas do cruel sistema tornou-se necessariamente um norte-coreano infiltrado na sociedade brasileira.

Para a revista Veja e seus controladores e realizadores, que são os grandes conglomerados capitalistas, a democracia é sempre um risco. Assim, o medo de quem tem bilhões de dólares em paraísos fiscais ou milhões de hectares, imóveis e empresas deve ser transferido para a classe média, que tem alguns imóveis, uma fazenda, uma indústria média etc. E isso é um trabalho constante tanto aqui como na Venezuela.

Nesses últimos 20 anos, a revista Veja fez esse serviço sujo. Transferir o medo dos privilegiados e bilionários para a classe média, alimentando a repetição da trágica história golpista de 64 e do período pós-segunda guerra. E teve certo sucesso. Tem-se hoje uma parte da classe média imbecilizada e amedrontada com os avanços da democracia brasileira.